É curioso o artigo do ex-Ministro Pedro Malan, no Estadão de hoje, sobre a crise internacional.
Muitas de suas críticas cabem como uma luva à sua condução da política econômica no período 1994-1999.
Diz ele:
(….) O que importa é que todos reconhecem hoje os elementos fundamentais da excessiva complacência que levou à situação atual e que tinha, a meu ver, quatro pilares, os três primeiros amplamente debatidos. O quarto, não, e foi dali que vieram, infelizmente, as graves e lamentáveis surpresas desta crise e do pânico que gerou.
O primeiro pilar de complacência foi erigido sobre a suposta sustentabilidade de um padrão de desequilíbrios globais, sem redução dos gastos domésticos (e/ou depreciação cambial) nos principais países deficitários (EUA, mas também Inglaterra, Espanha, Austrália, França, Itália), e aumento da demanda doméstica e/ou apreciação cambial nos principais países superavitários (China, Japão, Alemanha, Rússia, Noruega, Arábia Saudita). Como disse Herbert Stein, "se uma situação não pode ser sustentada, ela não o será".
Todo o dilema do período 94-99 repousava nessa loucura. Se há um desequilíbrio externo crescente, cria-se uma situação insustentável. Ou se jogava o país em uma recessão braba ou se desvalorizava o câmbio. Malan permitiu que a situação explodisse em 1999 praticando uma política econômica em que o único agente era a política monetária do BC.
O segundo pilar estava ligado ao fato de que o endividamento "como nação", a que se refere Geithner, era tanto a dívida externa dos EUA quanto sua contrapartida doméstica, isto é, o endividamento crescente das famílias norte-americanas (e inglesas, e espanholas, e…) em relação à sua renda, contando com a valorização permanente dos ativos que adquiriram com o seu endividamento.
Justamente o modelo utilizado pelo Brasil para atrair capital especulativo em todo esse período do governo FHC e do governo Lula: a perspectiva (insustentável) da valorização eterna dos ativos, pela apreciação cambial.
O terceiro foi uma confiança, que se mostrou enganosa, no papel do Fed e de outros bancos centrais de reagir ao estouro de bolhas nos mercados imobiliários ou de ações por meio de abruptas e expressivas reduções de taxas de juros. Afinal, havia sido assim em outubro de 1987, em setembro/outubro de 1998 e após setembro de 2001.
Que confiança enganosa? Depois que a crise estourou, havia dois caminhos: ou a estatização de parte relevante do sistema bancário (o que teria abreviado a crise) ou a redução dos juros + aumento da liquidez internacional.
No quarto pilar, há culpas de governos: a aterrorizadora descoberta de que seus "balcanizados" sistemas de regulação e supervisão de instituições financeiras haviam fracassado em detectar problemas sérios de risco sistêmico. E há culpas do setor privado. Como escreveu Paul Volcker, "dito de maneira direta, o brilhante novo sistema financeiro, a despeito de todos os seus talentosos participantes e de todas as suas ricas recompensas, fracassou no teste de mercado".
O que ocorreu com o câmbio em 1999, senão a confiança cega, até o limite da ruptura, de que o BC conseguiria administrar as pressões externas.
Passados quase oito meses, os tesouros e os bancos centrais dos países desenvolvidos foram capazes - a um custo presente e futuro elevado para seus contribuintes - de conter o pânico, apagar os principais focos de incêndio e transmitir afinal à opinião pública e aos mercados a ideia de que tinham entendido a situação e de que sabiam o que fazer para a superação da crise, cujas consequências estarão experimentando em termos de desemprego ainda crescente neste ano e em parte de 2010.
Não entendi. Que tipo de ação foi empreendida pelos BCs para conter o pânico? Uma delas foi redução de juros; outra, injeções de liquidez; uma terceira, garantia aos correntistas. Malan critica topicamente a redução dos juros e elogia genericamente as medidas dos BCs. Como assim?
No Brasil não temos problemas sérios em nenhum dos quatro pilares da excessiva complacência que levou os países desenvolvidos à grave recessão que ora enfrentam. Não temos problemas graves em nossas contas externas que exijam dramáticos ajustes de curto prazo. Não tivemos, e não temos, bolhas imobiliárias e crises de crédito derivadas de empréstimos de alto risco a famílias e empresas sem condições de pagá-los. Não temos, de forma complacente, a percepção de que basta o Banco Central reduzir juros nominais para evitar qualquer crise.
Malan comete um sofisma típico do pensamento latino-americano. Redução dos juros é condição necessária mas não suficiente. Ele usa "não suficiente" para minimizar a condição necessária. Adapta-se bem a certos manuais sobre o pensamento do continente, que o próprio Malan gosta de divulgar.
Por último, mas não menos importante, resolvemos os problemas sérios de solvência no nosso sistema financeiro privado e público há mais de uma década, com o Proer e o Proes, tão violentamente combatidos pela barulhenta oposição da época.
Mas creio haver entre nós um excesso de complacência, de natureza distinta das complacências dos desenvolvidos, que tem que ver com a ideia - que eles não têm - de que a grave crise atual teria demonstrado o fracasso dos mecanismos de mercado e a necessidade de um "novo paradigma teórico" que restabeleça o papel do Estado não só na superação da crise, mas como agente principal do desenvolvimento econômico sustentado, o demiurgo de um "outro mundo" que a crise teria tornado possível, desejável - e necessário.
Há, por certo, muito o que fazer, mas como notou, e muito corretamente, o ilustre ministro Delfim Netto (explicando "de onde não virá a nova reencarnação keynesiana"), "não precisamos de um Estado ?maior?, como querem os novos arquitetos, mas de um Estado ?melhor?"! Estou certo de que o ministro Delfim entende um Estado "melhor" como um Estado indutor eficaz, capaz de criar as condições para que o "ânimo vital" dos empresários privados possa expressar-se em termos de suas decisões de investimento.
Malan é gozado. Há uma discussão sofisticada em curso, sobre o papel do Estado, o aumento e os limites da regulação, o significado desse conceito de "estado indutor". Ele simplifica tudo, joga a discussão no valo comum da ideologia rasa - "estado maior" x "estado menor"- e com isso foge da discussão mais complexa. Ora, deixe esse jogo de várzea para os Alexandres Schwartsmans e para os ideológos midiáticos. De um ex-Ministro espera-se algo minimamente mais sofisticado.
Com efeito, o relatório da "growth commission" do Banco Mundial, presidida por um Prêmio Nobel, Michael Spence, enfatiza a existência de governos capazes, confiáveis e efetivos operacionalmente como uma das cinco mais importantes características das experiências bem-sucedidas de crescimento econômico sustentado no longo prazo. "Lideranças políticas de um governo", diz o relatório, "emitem poderosos sinais sobre valores e sobre o que constitui comportamentos aceitáveis e comportamentos inaceitáveis de seus integrantes."
Mesmo para os que acham que "nunca delinquiram mais que o razoável" e que "a virtude não iria longe se a vaidade não lhe fizesse companhia", vale lembrar o que escreveu Adam Smith há 250 anos. "O grande segredo da educação reside em direcionar a vaidade humana para fins pertinentes: o desenvolvimento das qualidades e talentos que são os objetos naturais e apropriados de estima e admiração por parte das outras pessoas."
Em que ponto ele situa a complacência do Banco Central - desde sua gestão - com fundos offshore, com a sonegação fiscal, com a lavagem de dinheiro, com o esquema Araucária?
Às mães brasileiras, que desejam que seus filhos desenvolvam, por meio da educação, os talentos e qualidades que os façam respeitados por quem se dá ao respeito: feliz dia!
Bom, essa homnenagem ele fez à maior mãe que o país já produziu: o Banco Central.